quarta-feira, agosto 16, 2006

Cravo e Canela

Ai santo Deus... ando maravilhada!
Começou a dar uma série nova na televisão. Eles chama-lhe outro nome... telenovela, parece-me. Que lindo que é!
É brasileira. Chama-se Gabriela... é a história de uma mocinha muito pobre, coitadinha, que me vem lá da terra dela para a cidade. Faz-me muito lembrar a minha história, sim senhor. Eu andava era um bocadinho melhor arranjada, com as pernas e os peitos menos ao léu, mas isto uma pessoa já sabe, no Brasil diz que se me faz mais calor. Mas a história é-me tão linda. Eu vou todos os dias para casa da Amélia do 11 ver. É por causa do filtro azul. Cansa menos a vista. Vou eu mais a Justa e a vizinha de cima da Amélia do 11, a Dª. Bárbara, do 11 também... já se vê. É simpática e muito dada, mas é um bocadinho opinativa. Tem génio o raios a partam da mulher. A gente a querer perceber o que o Nacib diz. O Nacib é um senhor da novela que para além de brasileiro é um bocadinho árabe, e a gente custa-se-nos a entender o que ele diz. E a Dª. Bárbara dizer coisas por de cima. Tenho cá para mim que ela é surda. Mas pronto é boa pessoa e assim. Às vezes está lá também a filha da Amélia, a Silvia Rute, que a gente trata por Rutinha. É uma rapariga muito sossegada, assim paradinha e encostada. Paradinha. Fuma é muito! Está sempre assim agarrada aos cigarritos. Isto as raparigas de hoje é são assim. Mas pronto, a Rutinha ao menos a gente não dá por ela, está lá sempre com os fumos e pronto.
Eu agora vou para a da Amélia ver outro capítulo. Parece que é hoje que a Maria Machadão vai dar uma desanda à Zarolha porque ela se esqueceu de mudar a água ao papagaio.
Tá, tá.

segunda-feira, julho 31, 2006

Penas de galinha e tachas

Tenho cá para mim que a Suzete me anda a fazer uns bruxedos ou assim umas coisas do mal. Não sei, é assim uma impressão que eu tenho. não é que eu seja pessoa para acreditar nessas coisas. Sou católica, das que pratica, sim... que eu não sou dessas que se dizem muito santas e que acreditam no nosso Senhor e até vão à missa e tudo, para serem vistas, e depois nas costas é a pouca vergonha que a gente sabe. Eu não! Vou à missa e quando peço não é só para mim... não senhor, é para os meus e para os que, coitadinhos, não têm nada. Por isso é que ainda não desisti da Suzete nem da Dolores que é assim também para o "leva e trás" e envenena um bocadinho. Mas agora isto de me aparecerem penas de galinha à minha porta e tachas debaixo da minha secretária é que já é demais. Tenho até andado com dores de cabeça e quebras na tensão. Ainda se me desmaio por aí e pode ser perigoso. E porquê Santo Deus... eu não tenho nada que ela também não tenha. Só porque... pronto, eu não gosto de me gabar e assim, mas pronto sou realista, ai pois sou... e a realidade é que eu sou assim um bocadinho mais bem apessoada que a Suzete... tenho assim um bocadinho mais de peito e pronto não sou assim desleixada no meu parecer. Arrelia-me pensar que eu me dou com pessoas, que até sou amiga delas e depois é isto. Estive mesmo vai não vai para descer até ao rés do chão, que é onde está o pbx, e lhe pregar um tabefe. Quem se me controlou os nervos foi a minha Justa... essa sim é amiga de verdade. Mas pronto agora é bom dia boa tarde e mais nada. Ela nem me pergunta nada... ela sabe... e ninguém me tira da ideia que a Dolores também sabe disto das penas e das tachas. Bom agora vou-me arranjar... eu mais a Justa mais a Amélia do 11 vamos à revista. Eu gosto assim duma boa revista de teatro... alegra-se-me assim a alma. Tá, tá.

sexta-feira, julho 28, 2006

Primeiro amor

Hoje é sábado e é dia de lida. Começo sempre por limpar o pó à sala. Não é por razão nenhuma assim em particular, é só porque tem mais bibelots, mais molduras, jarrinhas e assim. E eu já sei se deixo a sala por último depois sobe-se-me um cansaço pelas pernas acima e já não faço nada. E isto tudo para dizer que encontrei, por detrás da senhorinha que eu tenho ao lado da janela que dá para o quintal da Almerinda do rés do chão, um envelope com fotografias antigas. Pronto, sentei-me no maple a ver as fotografias e já não fiz mais nada. Não foi por desleixo foi, por assim dizer, uma espécie de saudade. As fotografias antigas deixam-me sempre assim com muita emoção cá por dentro... Uma pessoa vê as pessoas e recorda, não é? Tanta gente que já se me foi... benza-me Deus nosso Senhor. Fotografias da minha tia Quinita num passeio a Fátima... tadinha, vê-se nitidamente os joelhinhos dela todos esfolados por causa de uma promessa que ela fez por causa de já não me lembra o quê. Mas assim a que mais me deixou emocionada foi uma comigo e com o meu primeiro amor. Garotices, já se sabe... não era assim nada de muito sério, mas podia ter sido não fosse ele me ter largado lá por uma madame francesa que dava aulas de música no conservatório e depois mo levou para a terra dela. Mesmo assim recordo-o com muito amor e carinho. Isto já se sabe, o primeiro amor nunca se esquece, não é assim? Chamava-se Porfírio Henrique. Era marçano na mercearia do pai do Hipólito o coxo, o sr. Aníbal, que era surdo. Era assim alto para a idade. Eu tinha acabado de chegar a Lisboa quando o conheci, havia de ter o quê Laurinha? Lembra-te lá... uns treze aninhos mal acabadinhos de fazer. Isso... treze anos. Ele era mais velho um ou dois, mais experiente. Era um malandro para as coisas dos beijos e assim. Eu gostava. Sempre séria, que isto uma pessoa pode ser dada mas tem que saber impor os limites. Foi linda a nossa história. O Porfírio Henrique... ai... Agora tenho que me ir. A Amélia do 11 vem cá a casa ver o festival da canção e eu ainda tenho de ir fazer um bolinho de laranja para o serão. Tá,tá.

quinta-feira, julho 20, 2006

A Máquina da Engenheira Isabel

Ando muito moída, isso é que é. Só eu e Deus nosso Senhor é que sabemos como eu ando. Tenho uma dor que se me começa nas costas e que se me vai subindo até aos ombros e se me desce pelos braços até à ponta dos dedos, salvo seja. E isto é tudo por causa do serviço. É que eu escrevo muito à máquina... relatórios, cartas e assim... e a máquina é uma daquelas antigas, nada daquelas muito modernas que se ligam à corrente e assim... como a que a engenheira Isabel tem na mesa dela. Mas isto já se sabe não é para todos... e não é que eu inveje os outros, não! Faz-me é umas raivas cá por dentro de ver assim estas injustiças. Só porque é engenheira! Ela nunca cá está! Uma máquina tão linda, assim brilhosa, parece feita do material dos aviões, assim moderna... Santo Deus... e para quê pergunto eu... sim para quê? Para andar a ganhar pó, enquanto a senhora engenheira anda por aí a passear-se pelos corredores. Eu nunca vi... e se a gente lhe pede para usar a máquina dela, não nos deixa. É logo um revirar de olhos e umas trombas. Diz que a gente não é instruídas. Agora!!! Falta de confiança na gente é que é! E eu aqui toda moída da coluna por fazer força nos dedos de tanto escrever à máquina. É que as teclas são muito rijas... e já se vê, se a gente é meiga e não faz força não aparece nada no papel e depois a senhora dona engenheira reclama que não se vê nada. A estúpida! Tomara já que a transfiram para outra secção... já tive chefes torcidos mas como esta... Santo Deus... Ainda por cima, tenho cá para mim que ela é ... até me custa a escrever isto... eu e a Justa... a gente acha que ela é vermelha. Parece-nos! Bom agora tenho de ir passar pomada nos braços para ver se melhoro. Vou-me ali esticar um bocadinho. Tá, Tá

quarta-feira, junho 28, 2006

Alguma família

Se há coisa que eu nunca fui, foi ser ingrata. Não senhora...
Sempre me ensinaram que, por pouco que a gente tenha, uma pessoa deve estar sempre agradecida e feliz.
E eu sou assim. Nunca ninguém me ouviu a queixar fosse lá do que fosse.
E razões tenho eu... se fosse agora desfiar o rol de desgraças que se me têm acontecido desde o dia em que nasci... meu Deus... nunca mais daqui saía.
Por exemplo... tinha eu oito para nove anos, morreu-se a minha mãe e o meu paizinho... assim, duma vez só... ceifou-se-lhes a vida. Tinham ido os dois, coitadinhos, até à boca do inferno para a minha mãe fazer um trabalho qualquer que uma senhora que via coisas, espíritos e assim, tinha mandado a minha mãe fazer. Pronto, estavam a eles a rezar e a atirar bracinhos em cera ao mar, vem de lá uma onda do mal e levou-se-mos para sempre. Diz quem assistiu que o meu pai ainda gritou por mim...
Por isso é que só acabei a quarta classe mais tarde. Foi por causa do trauma... e também porque a minha tia Quinita me pôs a trabalhar para ela. Ela, coitadinha, sempre foi muito boazinha para mim e quis logo por-me a servir lá no lugar que ela tinha. Era bonita a minha tia Quinita, assim larga de anca, mulher parideira, como se diz lá na minha terra. Coitada, morreu solteira, nunca nenhum homem lhe pegou.
Fiquei com ela até aos doze anos. Nessa altura a minha madrinha Arlete, que era cá de Lisboa, mandou--me vir buscar para perto dela.
E lá vim eu... ainda me lembra... o que eu vinha deslumbrada, nunca nos dias da minha vida tinha eu visto prédios assim, com cinco ou seis andares... meu Deus... estava radiante.
A minha madrinha Arlete era assim uma senhora bem apessoada, e muito activa. Gritava-me um bocadinho... por causa das coisas da higiene e assim... eu estava habituada a tomar o meu banhito assim de longe a longe e a minha madrinha era muito asseada, coitadinha.
Era tão boa pessoa... morreu com uma lasca de sapateira na garganta. Ficou toda roxinha. Coitadinha.
Bom isto agora está-me a dar uma grande tristeza e eu ainda tenho que fazer umas coisas na cozinha. tá, tá

terça-feira, junho 27, 2006

Parede

Eu sempre fui uma pessoa que gostou do ar livre e de passeatas, sou assim alegre e bem disposta. Gosto do convívio pronto. Uma pessoa não é menos séria só porque gosta assim de garotices e de se divertir.
No Verão, em Agosto, eu mais a minha Justa íamos sempre a banhos. A Amélia do 11 também ia connosco. Nessa altura também iam a Dolores e a Suzete, coitadinhas, quem é que ia adivinhar... a vida às vezes... meu Deus.
Escolhíamos sempre as praias da linha, era mais perto. Apanhávamos o comboio em Santos e apeava-mo-nos na Parede. A gente ia para a Parede por causa do iodo, diz que faz bem aos ossos o iodo. Não é que alguma de nós sofresse já do reumático ou assim, mas a gente precavia-se, não é ?
Cada uma levava a sua comidinha depois dividia-se umas pelas outras.
Eu levava sempre uma taparuere com fatias de fiambre e ovos cozidos. A Justa levava umas carcacinhas e gasosa. A Dolores levava pastéis de massa tenra, com carninha cozida e pastelinhos de bacalhau, tudo muito oleoso graças a Deus. A Suzete levava, sempre, uma salada de batata, muito seca, sem jeitinho nenhum, mas pronto, isto a cavalo dado não se olha o dente.
E lá passávamos nós o dia.
Íamos a semana inteira, depois ao Sábado ficava-se em casa, por causa da lida e assim. Aos Domingos ou visitávamos a feira popular... o que eu gosto duma fartura... ou íamos à matiné do Cinearte ou do Paris... conforme a fita que estivesse a passar.
O que eu gostava desses Verões passados na Parede. Agora uma pessoa já nem pode ir para lá. Ai... Bom agora vou ali para o maple. Acendo a televisão. Vai dar variedades estrangeiras. Tenho de me lembrar de comprar um filtro daqueles azuis como a Amélia do 11 tem, para não cansar tanto a vista. Tá, tá.

Aposentação

Hoje posso considerar-me feliz. Aposentei-me!
Dediquei quarenta e cinco anos, mais os seis meses e três dias que esperei pela resposta da minha aposentação, à função pública. Com orgulho servi o meu país e os meus concidadãos.
Fui telefonista. Dominei o Pbx durante quinze anos, depois, com a quarta classe acabada, concorri a escriturária dactilografa e consegui. Não foi à primeira, porque treinei numa máquina HCESAR e o teste foi numa AZERT. Atrapalhei-me um bocadinho. Mas à segunda consegui.
Ainda me lembro... passei eu, a Justa e a Dolores. A Suzete ficou-se pelo Pbx, fez quatro erros ortográficos. Na altura ainda tivemos pena. Mas depois a Suzete ficou muito invejosa do nosso sucesso e começou a fazer-nos a vida negra com mexericos e mentiras e coisas assim. Não esperava, confesso, e fiquei muito sentida. Já se vê, uma pessoa trabalha ao lado da outra durante anos e depois é só facadas nas costas. Eu penso cá para mim que ela não estava sozinha na coisa, não senhor. A Dolores sempre com aquele ar que não parte um prato... sempre a levar e a trazer... uma pessoa desconfia. Também tiveram as duas um fim tão triste.
A Suzete, coitadinha, num dia assim de muita trovoada, estava a passar uma chamada para um sr. engenheiro do quarto piso, (por acaso um sr. muito simpático) caiu um raio e olha... lá ficou ela agarrada ao Pbx... Foi uma carga de trabalhos para a tirar de lá... toda retesada... Ele há cada maneira de uma pessoa se ir que eu às vezes nem sei... meu Deus. Já a Dolores foi a apanhar o cacilheiro... coitada, aquilo foi um azar. O rio estava bravo e o cacilheiro baloiçava um bocadinho... ela alçou a perna para entrar só que pisou em falso e, coitadinha, lá ficou toda esmigalhada. Não foi bonito, não senhor.
E olha... lá ficámos eu e a Justa... Anos e anos a trabalhar lado a lado na secção. Ela tratava dos processos dos funcionários que iam para o estrangeiro e eu dos que trabalhavam no ministério... Fomos chamadas por duas vezes ao gabinete do sr. director para recebermos cada uma um louvor. Isto uma pessoa não se esquece, é o que se leva desta vida. Eu agora de repente tenho de ir. Estão a bater-me à porta, deve ser a Amélia, que mora ali no 11, por cima da mercearia do Hipólito o coxo. Ela ficou de cá passar para bebermos chá e comermos umas bolachinhas, espanholas, de manteiga que me trouxeram de Badajoz. Ta,ta.